segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Sentenças delirantes dum poeta para si próprio em tempo de cabeças pensanteS

1
Não te ataques com os atacadores dos outros.


Deixa a cada sapato a sua marcha e direcção.
O mesmo deves fazer com os açaimos.


E com os botões.


2
Não te candidates, nem te demitas. Assiste.
Mas não pense que vais rir impunemente a sessão inteira.
Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.

3
Tira sempre as rodas ao peixe congelado,
mas sempre na tua mão.
Depois, faz um berreiro.
Quando estiveres bastante gente à tua volta,
descongela a posta e oferece um bocado a cada um.

4
Não te arrimes tanto quanto à ideia de que haverá sempre
um caixote com serradura à tua espera.
Pode haver. Se houver, melhor…


Esta deve ser a tua filosofia.


5
Tudo tem os seus trâmites, meu filho!
Não faças brincos de cerejas
sem te darem, primeiro, as orelhas.
Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.


6
Perguntas-me o que fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.


É provável que te sintas logo muito melhor.


Sai, então, debaixo da pedra.


7
Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.
Poderias atrapalhar os trabalhos.
Os de pedra sobre pedra, entenda-se.


Mas dá sempre um «Bom Dia!» ao pessoal do estaleiro.
Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.


8
Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre
com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo
a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.
Oxalá o consigas!


9
Tens um glorioso passado futurível,
mas não fiques de colher suspensa,
que a sopa arrefece.


10
Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem
de tua criação, nunca escolhas o de Fradique Mendes.
A criação literária não frequenta o guarda-roupa,
muito menos quando a roupa tem gente dentro.


11
Resume todas estas sentenças delirantes numa única
sentença;
um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa.

Alexandre O’Neill

4 comentários:

Salvador d'Almeida disse...

mandamentos..e sabedoria de quem escreve

Gi disse...

Como eu gosto deste escritor, que conheci, pessoal e efemeramente, tinha eu 17 anos!

MAria tardIA disse...

Salvador,

de facto!

MAria tardIA disse...

Gi,

que pena eu não ter tido essa fortuna!